Pisando firme no Catar

Quando estivermos todos ligados na tela da TV para acompanhar os jogos da Copa do Catar, experimente prestar mais atenção ao gramado dos estádios. Tem tecnologia brasileira em campo por ali para garantir uma boa performance dos atletas em meio aos embates intensos das jogadas.

“Sabe quando, às vezes, assistindo a um jogo, a gente vê o jogador correndo, caindo ou escorregando e voam uns pedaços de grama? A aplicação de alta tecnologia nos gramados garante que eventos como esse não mais ocorram e que essa vegetação não se solte, mesmo nos momentos de maior impacto”, ressalta a conselheira Eng. Agr. Gisele Herbst Vazquez, coordenadora adjunta da Câmara Especializada de Agronomia do Crea-SP e especialista em fitotecnia, área da Agronomia que estuda o desenvolvimento das plantas de forma a aprimorar os processos de produção e, com isso, aumentar a produtividade agrícola.

Para evitar que os jogadores acabem comendo grama durante a partida, entram em cena diferentes técnicas de plantio. Além da disposição de grandes rolos de grama, procedimento que rendeu uma quebra de recorde mundial e citação no Guinness Book aos envolvidos, com a participação da empresa brasileira Greenleaf (que somou a Copa do Catar ao currículo já turbinado com o campeonato de 2014), quando 674 rolos de 700 kg cada foram dispostos em 65 linhas de gramado em nove horas e 15 minutos, outros métodos também garantem belas (e eficientes) áreas verdes.

“A grama produzida comercialmente vem em grandes rolos e, após ser distribuída no solo, vai formando novas raízes e se fixando, o que garante que suporte o pisoteio”, esclarece a engenheira agrônoma. Inicialmente todo o solo do local é retirado e substituído por uma mistura de areia e matéria orgânica, chamado de topsoil. O plantio pode ser realizado por meio de diversas técnicas: por sementes (o mais barato e demorado), por tapetes (placas de grama de 62,5 x 40 cm), por rolos (com tamanho normalmente de 40 x 0,75 m, o que propicia a instalação de um gramado de forma rápida e com menos emendas), plugs (mudas de grama enraizadas com solo ou substrato em caixas plásticas, com custo bem menor que o tapete e o rolo) e sprigs (mudas de grama sem solo ou substrato, o que favorece a formação de um gramado de baixo custo, pois um único caminhão pode transportar sprigs suficientes para plantar uma área de 10.000 m2). “Neste último caso, como a muda é pequena e o plantio é espaçado, o solo fica mais exposto até a formação completa do gramado, que se dá aproximadamente 90 dias após o plantio. Além disso, recomenda-se que o projeto seja acompanhado por uma empresa e/ou técnico especializado, devido à maior complexidade e às técnicas necessárias”, explica Gisele.

Gramados híbridos 

O desafio dos especialistas responsáveis por preparar os gramados das áreas que receberão os jogos é garantir que a grama tenha um crescimento rápido e seja resistente ao pisoteio. “Justamente por isso, o gramado nesses campos será híbrido, com 10% de fibra sintética compondo o restante de vegetação natural. Com isso, o campo tolera quase o dobro do número de jogos por ano em relação ao gramado natural”, ressalta a conselheira.

Após o plantio da grama, máquinas específicas injetam fibras a uma profundidade de mais ou menos 18 cm, ficando 2 cm acima da superfície do solo. Um campo de futebol pode receber 20 milhões de fibras, o que garante uma aparência e sensibilidade natural, melhorando a drenagem e evitando que pedaços de grama se soltem do solo”, explica.

Mais da metade dos gramados dos estádios da Copa do Catar está a cargo da Greenleaf. No total, são quase 150 áreas verdes, entre campos de estádio e de treinamento, regularmente refrigerados e regados com água do mar dessalinizada.

“O engenheiro agrônomo participa de todas as etapas da instalação de um gramado, desde a seleção da espécie e da variedade de grama que será utilizada. Por meio de melhoramento genético são desenvolvidas variedades específicas para cada condição ambiental e finalidade de uso”, esclarece.

A melhor opção para as necessidades do Catar, segundo Gisele, é a grama da espécie Seashore paspalum variedade Platinum, tolerante a altas temperaturas, água salobra e períodos nublados prolongados. E o principal: resiste bastante ao pisoteio, tem um rápido crescimento e pode ser irrigada com água do mar.

Outras técnicas

O crescimento das plantas também pode ser estimulado usando-se um sistema específico de iluminação para garantir a realização da fotossíntese. O próprio Maracanã, depois que foi realizada a reforma para a Copa do Mundo de 2014, teve redução da área de sol no gramado. E até hoje são utilizadas lâmpadas especiais que iluminam o gramado, garantindo o adequado desenvolvimento das plantas. “Outra coisa muito interessante feita nos estádios é o sistema de irrigação e de drenagem dos gramados. A irrigação é toda automatizada por meio de aspersores rotores escamoteáveis, equipamentos próprios para essa atividade que são instalados submersos no solo e emergem somente na hora de irrigar o gramado. Por meio de sensores que medem a umidade do solo, o sistema de irrigação é ou não ativado, garantindo que as plantas recebam a quantidade exata e necessária para o seu pleno desenvolvimento” diz Gisele.

Ainda segundo a conselheira, o sistema de drenagem garante que o jogo de futebol prossiga e que a bola role de forma adequada mesmo sob chuvas intensas. Existem dois modelos de drenagem: por gravidade e a vácuo. Na drenagem gravitacional, sob o solo, existe um sistema de tubos drenantes perfurados dispostos normalmente em espinha de peixe, instalados com um pequeno desnível e que conduzem a água das chuvas para galerias e depois por bombas, para fora do gramado. Já no sistema a vácuo, utilizado por exemplo na Arena Corinthians, o processo de drenagem é exatamente o mesmo, a diferença é que existem dois tubos coletores fechados, ligados a uma bomba, que suga o ar dentro deles e gera um vácuo. “Esse vácuo exerce uma pressão e puxa a água, que desce muito mais rápido”, diz Gisele.

“Por meio de análise da fertilidade do solo e pelo estudo da necessidade de nutrientes pelas plantas, também é realizada a adubação do gramado. Ainda é realizado o controle de plantas daninhas e que podem competir com o gramado por luz, água e nutrientes, além de pragas e doenças, que interferem de maneira negativa no pleno desenvolvimento das plantas. Tudo isso precisa ser controlado de forma rápida, utilizando-se normalmente produtos químicos aplicados sob a responsabilidade técnica de engenheiros agrônomos”, observa.

A descompactação do gramado é outro ponto importante. “Quando o gramado fica muito compactado, o que interfere no pleno desenvolvimento do sistema radicular das plantas, entram em cena máquinas com ‘pinos sólidos ou vazados’ que perfuram o solo numa profundidade de 15 a 25 cm. As de pinos sólidos criam espaços para a aeração do solo e desenvolvimento das raízes. Já as de pinos vazados retiram tubetes de solo compactados, que posteriormente irão receber areia para melhorar a drenagem, diminuir a compactação e aumentar a aeração do solo, porque a grama é um ser vivo, que respira e precisa de ar”, explica.

O corte da grama é um capítulo à parte. “Quando se apara um gramado não se deve fazer apenas um corte horizontal. Existem máquinas que fazem o corte vertical, que é a retirada das folhas e raízes secas que ficam por baixo da parte verde superior do gramado, chamado de colchão ou thatch, de forma a promover o rejuvenescimento da grama e a formação de novos brotos”, diz. Já o corte horizontal pode ser realizado com lâminas helicoidais ou horizontais. “O sistema helicoidal é o mais utilizado em gramados profissionais de futebol por efetuar o corte de maneira semelhante a uma tesoura, não rasgando as folhas, proporcionando uma melhor cicatrização dos tecidos. O sistema horizontal com facas rotativas normalmente deixa as pontas das folhas serrilhadas, o que pode favorecer a entrada de doenças, comprometendo a sanidade das plantas”, acrescenta.

Uma das perguntas mais frequentes aos técnicos que trabalham com gramados é como são feitas as listras nos campos de futebol. Muitas pessoas acreditam que se trata de variedades diferentes de grama, altura de corte diferente e mesmo o uso de tintas ou corantes.

Segundo a conselheira, o que produz as faixas nos gramados é o corte com uma roçadeira helicoidal, que possui um conjunto formado por lâminas helicoidais e um rolinho que dobra as folhas da grama para um determinado lado após o corte. “Assim, cortando uma faixa em um sentido e outra no sentido contrário, faces diferentes das folhas ficarão expostas à luz, produzindo cores diferentes. Dessa forma, toda a grama é cortada na mesma altura e formam-se as tradicionais faixas”, explica.

Diversos equipamentos contribuem, portanto, para garantir as melhores técnicas de implantação, manejo e crescimento dos gramados. “Tudo isso é desenvolvido por engenheiros agrônomos, engenheiros agrícolas e demais profissionais da Engenharia trabalhando todos juntos. A Engenharia está aí em tantas coisas, na construção e iluminação dos estádios, nos sistemas de irrigação e drenagem, na parte química dos fertilizantes e defensivos, nas máquinas e equipamentos, em toda a parte agronômica no estudo da relação solo-planta-atmosfera e nos aspectos climáticos avaliados pelos meteorologistas. Existe muita tecnologia em tudo que vemos ‘verde’, nos alimentos e bebidas que consumimos e exportamos, nas roupas que vestimos e nos gramados esportivos que nos divertem e alegram”, ressalta.

Completando o segundo ano de seu terceiro mandato como conselheira do Crea-SP, a engenheira agrônoma já contabiliza mais de 35 anos de experiência na área, grande parte dedicada à carreira acadêmica, lecionando disciplinas ligadas a agricultura, paisagismo e floricultura.

Como representante do Confea na Câmara Setorial de Flores e Plantas Ornamentais do Ministério de Agricultura, Gisele coloca os conhecimentos obtidos com o mestrado e o doutorado na área de fitotecnia à disposição do setor, que também reserva atenção especial justamente aos gramados.

Saiba mais sobre a influência da área tecnológica na Copa do Catar aqui.